Precisamos falar sobre Ciência (mas sabemos como?)
Seja na universidade, na conversa com amigos que não via há tempos, ou na fila longa do banco, a pergunta “O que você faz?” é comum. “Sou um Engenheiro e Cientista de Materiais!”, respondo. E a reação a essa resposta já é esperada: “Ah, que legal! E o que é isso?”. Isso é, quando não me perguntam em qual almoxarifado eu trabalho. A partir daí, a conversa pode seguir por dois caminhos: ou a pessoa se interessa e quer saber mais (um erro, eu diria), ou ela simplesmente sorri e muda de assunto.
A verdade é que a maioria das pessoas não tem ideia do que fazemos na pesquisa científica. Pior ainda: A maioria das pessoas não sabe o que é ciência! O estudo “O que os Jovens Brasileiros Pensam da Ciência e da Tecnologia?”, da Fiocruz, traz alguns dados sobre a população brasileira jovem: 87% é incapaz de citar uma instituição que se dedique à pesquisa científica, e apenas 5% conhece o nome de um cientista brasileiro. Não é à toa que a ciência é tão atacada. O negacionismo e a desinformação estão em alta, e o pensamento crítico é visto como uma ameaça aos projetos de poder.
Há um problema gigantesco com a escrita científica, e muitos de nossos colegas não sabem como escrever um texto claro e acessível até mesmo para os seus pares (tema para outro post!). Então, fica a pergunta que me move a escrever hoje: se não conseguimos nos comunicar nem entre nós, como vamos nos comunicar com o público geral?
O problema vem de casa
Nas suas primeiras páginas, o livro “Scientific Writing = Thinking in Words”, de David Lindsay, traz alguns números interessantes sobre a escrita científica:
- 99% dos cientistas concordam que escrever é uma parte essencial do seu trabalho como cientistas.
- Menos de 5% já tiveram qualquer instrução formal em redação científica como parte de sua formação científica.
- Para a maioria, a única experiência de aprendizado que têm vem dos exemplos encontrados na literatura científica que leem.
- Cerca de 10% gostam de escrever; os outros 90% consideram isso uma tarefa necessária.
Scientific Writing = Thinking in Words, David Lindsay, 2019
Esses números mostram um cenário claro: nós, cientistas, não sabemos escrever. A formação científica é focada em ensinar a fazer ciência, e não a comunicar ciência. Se a própria base da comunicação científica formal é construída sobre essa fundação frágil: sem treinamento, aprendida por imitação e muitas vezes vista como um fardo. Não é de admirar que a comunicação com o público para além da Academia seja tão desafiadora.
Essa dificuldade de conseguir articular nossas próprias ideias e resultados com clareza, mesmo para nossos colegas, se reflete diretamente na forma como a ciência é percebida fora dos seus muros. A falta de clareza cria um vazio entre a ciência e o dia a dia das pessoas, que se torna um terreno fértil para a desinformação. Ela impacta também uma das funções mais importantes da nossa universidade pública: a extensão universitária.
Saindo da zona de conforto
Junto do Ensino e da Pesquisa, a extensão universitária complementa os três pilares da universidade pública, e deveria ser o principal canal para levar o conhecimento cientifico para a sociedade. Mais importante que isso, a extensão universitária é uma oportunidade de ouvir a sociedade e entender suas necessidades, de dialogar o conhecimento científico e o conhecimento tradicional e encontrar soluções conjuntas para os problemas que enfrentamos.
Logo, a extensão depende de uma comunicação eficaz.
Em quase três anos de trabalho no projeto Barraca da Ciência, eu aprendi algumas coisas sobre como comunicar ciência para diferentes públicos.
Primeiro escutar, depois falar
A Barraca da Ciência é um projeto de extensão interdisciplinar, onde todas as áreas do conhecimento acabam convergindo para a Botânica. O objetivo de ter alunos de Engenharia de Materiais era apresentar as possibilidades de aplicação da botânica no desenvolvimento tecnológico. Então, para isso, eu tinha a demanda de apresentar a minha pesquisa científica para os produtores rurais agroecológicos, o público-alvo inicial do projeto.
E a primeira lição veio rápido: antes de sair explicando sobre polímeros derivados de plantas, compósitos com fibras naturais e como aplicar esses materiais na agricultura, eu precisava escutar. Escutar quais eram os desafios reais deles no campo, quais problemas eles enfrentavam no dia a dia com suas culturas, com o manejo, com o armazenamento. Escutar qual era a linguagem deles, como eles viam a relação entre o conhecimento tradicional e as novidades (como a que eu apresentava) que vinham de fora.
Sem isso, eu não conseguiria apresentar nada que fizesse sentido para eles. E pior: eu iria soar como alguém que vinha de cima para baixo, que estava usando termos difíceis de entender e que estava impondo um conhecimento técnico que não parecia ter relação com a sabedoria prática cultivada por eles ao longo de gerações.
Percebi que, por exemplo, que quase ninguém conhecia o termo polímero hidrogel de liberação controlada. Mas todos entendiam quando eu falava de um gel feito a partir de uma planta, e que poderia absorver água como uma fralda de bebê. E que além de absorver, ele poderia liberar essa água lentamente, como um sistema de irrigação. Isso era algo que fazia sentido para eles, e que poderia ser útil no dia a dia deles.
No final de cada ação de extensão, eu aprendia mais e mais sobre a realidade em que minha pesquisa buscava se inserir. E, com isso, eu conseguia adaptar a minha comunicação para que ela fizesse sentido para o público. Eu não estava apenas falando, mas também escutando e aprendendo com eles.
Comunicação eficaz é mais que simplificar
A experiência que tive com extensão durante a minha graduação me mostrou que comunicar ciência bem é construir pontes. Pontes entre a academia e a comunidade, entre o conhecimento científico e o saber popular, entre as necessidades reais das pessoas e as possíveis soluções que a ciência pode oferecer. Para comunicar, precisamos sair da nossa zona de conforto e nos colocar no lugar do outro. É um trabalho contínuo de escuta, aprendizado e adaptação. É o que me faz ter uma paixão ainda maior pela ciência.
E aí, o que fazer?
O desafio é grande, e as respostas não são fáceis. Entretanto, a urgência de combater a desinformação, o negacionismo e o desprezo pela ciência é urgente. Precisamos ter a responsabilidade de repensar como comunicamos a ciência e como podemos construir narrativas que conectem a ciência com o cotidiano popular.
Precisamos de mais apoio na extensão universitária, que ainda é vista como um “bicho de sete cabeças” dentro da academia. Não existem mecanismos de apoio financeiro, de infraestrutura e de formação. Como sair do espaço universitário e realizar um trabalho de extensão em uma comunidade a 50 km de distância sem apoio institucional? Infelizmente, o comum são projetos onde os orientadores precisam arcar com os custos de material, transporte, alimentação e hospedagem.
E mais importante, precisamos de mais incentivo à formação em comunicação científica, para que futuros cientistas estejam preparados para o desafio de tornar a ciência comunicável. A formação científica tem se afastado cada vez mais da discussão filosófica e ética da ciência, e isso é um erro (aqui, sugiro a leitura do artigo “Science and Philosophy: A Love–Hate Relationship”). Precisamos de mais cursos, mais oficinas, mais espaços de diálogo e troca de experiências. Precisamos de mais pessoas dispostas a escutar e aprender com os outros.
No final das contas, a ciência não é um fim, mas uma ferramenta para conhecer o mundo e transformá-lo. E, como qualquer ferramenta, ela só é útil se soubermos como usá-la.